A MALDITA “ADMINISTRAÇÃO POR METAS OU OBJETIVOS”

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Parte I
Naquela segunda-feira, repetia eu os dias de sempre: dirigia-me ao escritório às oito da manhã, barbeado, engravatado e, de véspera, já engraxado o sapato preto.

Ao deixar o carro na garagem da avenida Rio Branco e encaminhar-me para a empresa, quem vejo e encontro? O Bráulio! O Bráulio, colega de infância e de faculdade; companheiro de praia aos domingos e de boates aos sábados. Formado, foi ter à Austrália, afazendar-se naquelas lonjuras, criar porcos e bois e, pelo que sei, enricar-se.

Tantos e tantos anos longe, não deixei por menos: levei-o ao escritório: tomar meu café e trocar notícias. Logo que chegamos, viu ele dezenas de telegramas e faxes sobre minha mesa, os quais, apesar da presença do amigo, tinha eu pressa em ler. E o fiz em voz alta, pois não havia por que esconder-lhe assuntos da minha rotina. Eram despachos vindos de várias cidades, enviados na sexta e, alguns, no próprio sábado. Um de Manaus, um tanto encorajador, dizia que conseguira, na semana, efetuar a venda de oito unidades, duas delas de primeira linha. Mas os demais – infelizmente todos – apenas informavam que só na futura semana poderiam enviar boas notícias de negócios prováveis.
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O Bráulio, inteligente, viu meu desaponto e, dada a nossa antiga amizade e convivência de muitos anos, perguntou-me:
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– Que diabo é esse que o pessoal anda desanimado e desanimando meu nobre amigo?
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Cabia-me responder-lhe, ainda mais porque gostaria mesmo que alguém ouvisse minhas razões.
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– Olha, Bráulio, não ando muito feliz com essa luta a que me obrigam. Há três ou quatro anos, a diretoria da empresa entendeu de colocar aqui a chamada “Administração por objetivos”, copiando metodologia de negócios dos gringos lá do Norte, e trazendo para todos nós da firma muitos abacaxis a descascar. É a verdade de tudo.

– Mas que troço é esse de “objetivo” que o está perturbando dessa maneira? perguntou o Bráulio.

– O troço é assim, Bráulio: a empresa engendra um aumento de vendas para o semestre, tentando ultrapassar a Net Industrial, e faz desse aumento (sempre ultra-ambicioso, claro) o seu chamado “objetivo semestral”. Aí, chama todos os chefes regionais do País, com tudo pago: passagem, táxi, hotel, cafezinho e até o et cetera, se necessário, e, em reuniões meio solenes, entrega frações do “objetivo empresarial” para cada um de seus fiéis súditos, que podem até pechinchar, tentando diminuir o objetivo imposto, mas, frequentemente, com míseras possibilidades de êxito. O objetivo é sempre o ambicioso desejo deles, transmudado, daí em diante, em penosa obrigação de seus súditos! Aí começa a briga, seu doutor, como você está vendo na papelada de minha mesa.

– Mas “briga” por quê, e de quem contra quem? perguntou o Bráulio.

– Durante todo o período, a evolução do objetivo de todos nós, executivos, chefes, diretores, vai sendo acompanhada, com constante troca de comunicações entre a gente e a empresa, entendeu? Um inferno! Entendeu?

– Eu sei. Mas até o governo tem metas, pô!

– É, o governo tem metas, mas não tem patrão. Ele é o patrão e o executor da meta. Então, escolhe a meta num tamanho viável. Se não for cumprida, é fácil arranjar uma desculpa política ou outra meta, até maior, para o ano seguinte… Você, Bráulio, nunca viu a moça da loja dizer: “Só estou dando esse desconto para o senhor porque preciso vender essa peça de qualquer jeito, para cumprir a meta deste mês.”? É o tal “objetivo”, coitada. Chamam de meta. Dele depende, meu caro, a remuneração do pessoal, e, mais que isso, o renome funcional, base das promoções ou mesmo das demissões…

Não são poucas, Bráulio, as empresas que contratam o funcionário e, na admissão, avisam: “Você vai ganhar o combinado, mas a firma vai lhe dar uma meta a ser cumprida em seis meses. Se não for cumprida, rua. É a “filosofia” da empresa.”

Aos antigos servidores, que já prestaram bons serviços, para poupar-lhes a demissão, é comum mandá-los, por transferência, para um buraco qualquer, onde o Capeta sentou praça!

Combinei com o Bráulio um jantar em minha casa, e ele se levantou e foi-se, dizendo não querer tomar mais o meu tempo.

Pus-me, então, a imaginar o quanto devia ser boa a vidinha do meu amigo, com inveja de sua rotina com os bois pastando, berrando, e ele sem metas a cumprir…
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Parte II

Era a tarde desse mesmo dia, quando, ali pelas quatro horas, o doutor Meyer, diretor da Divisão de Vendas, entrou, sorridente em minha sala. Após os cumprimentos, indagou-me:

– Como foi a cobertura das metas de sua região até hoje?

– Doutor, estou por perto, mas nem tanto. Parece que os gerentes têm razão quando informam que há um certo marasmo no comércio de toda a zona…

– Marasmo? perguntou-me. Mas isto não explica nada. O Juvenal, de Porto Alegre, conseguiu em quinze dias cobrir sessenta e cinco por cento da meta total.

– É, mas o Sul é o Sul, né?

– Sim, mas o Juvenal sempre se saiu bem em todas as regiões em que trabalhou, não é verdade?

– Pra ser sincero, doutor, depende também do objetivo que nos dão. Neste semestre me foi dado um aumento de mais de trinta por cento do que me atribuíram no semestre passado! Eu disse, claramente, ao doutor Lívio que era alto demais para minha zona o objetivo que me conferiam, e ele nem respondeu à minha ponderação!

– O Lívio trabalha conosco há bem tempo e conheço como ele é competente no encargo de atribuir metas aos nossos chefes.

– Significa, então, doutor, que o Senhor acha que o conhecimento que nós chefes temos de nossa região, por nela trabalhar por muitos anos (no meu caso, por quase uma década) vale menos que as razões do doutor Lívio, que nunca foi ao Norte, e não conhece, como eu, a real potencialidade da…

– Espera, não tente desmerecer a competência do Lívio para justificar seu fraco desempenho ou, digamos, um meio fracasso dos seus subordinados e…

– Não e não! contestei. Eu falo a verdade! Quando trabalhei na Catete Seguradora, tínhamos metas a cumprir; entretanto, lá era a gente que calculava as próprias metas, e nunca deixava de atingi-las e, quase sempre, de ultrapassá-las. Até hoje lá é assim.

– Nossa conduta aqui é diferente. É a empresa que sabe a meta de que precisa e a divide com seu pessoal. O senhor sabe bem disso…

– Até que sei, mas o que penso é que, com este sistema, a diretoria inventa um enorme aumento de vendas, um enorme aumento de lucro, e manda a gente arregaçar a manga e lutar pra satisfazer o desejo dos donos! Assim é fácil…

Foi quando me levantei e, com um trem me puxando pra falar, continuei:
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– Os chefes… os chefes não; os que o senhor, como presidente, põe para marcar as metas de venda prá gente querem puxar saco da diretoria e jogam nas costas da gente objetivos absurdos, e cobram da gente, e querem saber todo dia quanto já vendemos, dizendo que estamos longe de alcançar a meta, e aí por diante, como se…

– É bom que o senhor estude mais a literatura da “Administração por objetivos”. Só a empresa sabe do quanto precisa para crescer; logo, só ela sabe quanto instituir de objetivo a ser cumprido.

– É onde o senhor está enganado. O Peter Druker, gênio da ciência da administração, tem sido meu guia, e ele diz que, na “Administração por objetivos”, as metas devem ser estabelecidas conjuntamente, por superiores e subordinados. Não pelo que a empresa precisa ou sonha realizar. E sei que esse grande mestre entende que o objetivo deve ser até “difícil”, requerendo esforço especial, mas nunca a ponto de ser inviável alcançá-lo. E eu respondo, doutor, só o empregado sabe quanto é possível conseguir, porque só ele conhece a praça, a região, as possibilidades. A diretoria sonha e joga seu sonho nas costas do pessoal!

– Escuta, disse o presidente, por que o senhor teima em discutir? Aqui não é lugar para isso, nem estou aqui para receber objeções!

– Por que não?! Onde vamos discutir nossa vida profissional? No programa “Mata gatos, mata gente” da televisão?…

– Não admito piadas!

– É piada eu lhe dizer que o Dudu me contou que nos Estados Unidos, onde ele morou, os executivos consomem cinquenta por cento da cocaina do país para superar o stress, a agressão psíquica das “metas”? Porque lá ou as cumpre, ou rua! O senhor sabe que a Lia, minha mulher, reza toda a noite, faz novena, prá que eu cumpra as metas que vocês dão? Que meu filho me pede as coisas, e eu falo com ele que só posso dar se cumprir as metas? Que ele pergunta pra mim, toda noite: “pai, já cumpriu a meta?”, e eu tenho que dizer que não? Que se eu não cumprir o diabo das metas inventadas aí pelos gringos e copiada por todo o mundo capitalista, tenho que tirar Carlinhos da escola porque não tenho como pagar seu estudo? Que eu, às vezes, penso que a escravidão era melhor…

– Pare com estas asneiras!

– …Que era melhor a escravidão, porque escravo apanhava de chicote, mas não tinha metas? Essa merda tá me matando! Põe outro aqui doutor! Deixa eu ir embora, engraxar sapato na Cinelândia, ou vender canetinhas na Rua do Ouvidor ou no meio dos infernos!…

E fui. Gravata desatada, paletó no ombro, cabelo em desalinho, pedaço de camisa sobrando sobre o cinto; fui saindo pela porta dos fundos… buscando a rua.


Arrebatadas, trezentas pessoas, na platéia, aplaudiam com entusiasmo, enquanto a cortina do palco ia lentamente se fechando.

– Voltem pro palco já! disse o contrarregra.

A cortina então se reabriu e a platéia levantou-se. De pé, entrou a aplaudir demoradamente, exultante, enquanto, ao fundo, alguns gritavam: “morra a meta! morra a meta”! E os aplausos não cessavam, ruidosos, assemelhando braveza e raiva, sem parar. Tal qual na quarta-feira, quando da primeira apresentação.

Aí, enquanto me curvava, agradecendo a manifestação do público, em meio ao alarido dos barulhentos aplausos, cochichei com o Marinho, que, na cena, fazia comigo o “doutor Meyer”: “Parece que o pessoal tá gostando… Deve tá tudo entalado com a peste das metas; não acha?”

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