TRÉPLICA: COMPARAÇÃO POSSÍVEL

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DEBATE
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Por Ana Paula Paes de Paula
CEPEAD-UFMG
E-mail: appaula@uol.com.br
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Também fiquei perplexa com a argumentação do debatedor do artigo, pois seus comentários sugerem que não compreendeu a comparação que realizamos. Não comparamos a administração pública gerencial e a gestão social, mas a administração pública gerencial e a administração pública societal, e, de fato, estes dois modelos de administração pública se referem à forma de organizar e administrar o Estado. O que tentamos apontar com essa comparação é que a administração pública societal vem elaborando alternativas para a gestão pública, mas não apresenta ainda uma proposta para a organização administrativa do aparelho do Estado, tal como foi implementada pela administração pública gerencial no Brasil nos anos 1990.
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Apontamos esse fator como um ponto fraco a ser sanado no modelo e tentamos discutir o seu diferencial examinando sua abordagem de gestão, que denominamos gestão social, comparando-a com o gerencialismo, que orienta a administração pública gerencial. O gerencialismo e a gestão social não são formas de organizar do Estado, mas também não podem ser considerados tipos de regime político e governo, sob pena de contrariar a base desses conceitos da ciência política. Seria mais correto afirmar que representam manifestações de regime e governo democrático no campo da gestão pública, uma vez que exprimem em suas instituições e ações a orientação política vigente. Posto que não existe apenas uma forma de estruturar e operacionalizar a democracia, o gerencialismo e a gestão social são diferentes traduções da gestão pública democrática.
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Agora, imagine-se a perplexidade do interlocutor se alguém afirmasse que é possível combinar água e óleo. É justamente isso que o debatedor propõe ao sugerir uma “administração pública gerencial social”. A administração pública gerencial pode buscar ser menos burocrática, considerando que algumas características do tipo ideal weberiano foram superadas, ainda que a dominação burocrática persista e venha elaborando formas cada vez mais sofisticadas de controle social.
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A administração pública gerencial também pode buscar ser mais democrática, mas é preciso considerar que seus idealizadores têm uma noção muito particular do que seja democracia e, em geral, dedicam mais atenção à representação e às instituições democráticas do que à construção de uma cultura política participativa. Embora o debatedor do artigo declare sua preferência pela democracia participativa e republicana e afirme que seu modelo de administração gerencial tem claro sentido participativo, isso não se reflete totalmente ao analisarmos a forma como o aparelho
de Estado foi organizado a partir da reforma, pois constatamos limitações institucionais e estruturais que impossibilitam a participação popular.
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A administração pública gerencial, no entanto, não pode buscar ser menos gerencial, pois perderia sua razão de ser, uma vez que o gerencialismo é um de seus fundamentos. Seja ela inspirada no “impulso para a eficiência” da Era Thatcher ou na “orientação para o serviço público” da Era Blair, continua imbricada com o gerencialismo. E sendo gerencialista, não partilha
do mesmo repertório de crenças e práticas da gestão social, que rejeita as fórmulas do management e tenta contemplar as peculiaridades culturais locais e as demandas de participação popular.
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Agora, imagine-se também que alguém dissesse que os filhos não têm o mesmo DNA que os pais. Devo dizer que é isso que o debatedor sugere quando diz que as versões da administração pública gerencial, as estratégias neoliberais e o Consenso de Washington não deveriam ser colocados na mesma categoria. Amenizadas ou não, as versões da administração pública gerencial tiveram sua gênese no neoconservadorismo e seguiram partilhando de suas práticas, ainda que
negando o seu discurso.
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Tendo em vista a reforma que se seguiria, o debatedor analisa a crise do Estado brasileiro por meio da “abordagem da crise fiscal”, também conhecida como “abordagem pragmática”, discordando do diagnóstico realizado pelo Consenso de Washington, mas aceitando suas recomendações e práticas:
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  • [...] a abordagem da crise fiscal [...] concorda basicamente com as propostas do consenso de Washington. Considera-as, entretanto, insuficientes, porque o diagnóstico da crise é incompleto e em parte equivocado.
    (BRESSER PEREIRA, L. C. A crise do Estado: ensaios sobre a economia brasileira. São Paulo: Nobel, 1992, p. 18).
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  • A abordagem pragmática não deve ser vista como uma rejeição do consenso de Washington, mas como uma alternativa que com ele compartilha muitas concepções [...] A abordagem pragmática aceita a necessidade de reduzir o tamanho do Estado, que cresceu de modo exorbitante nos últimos cinqüenta anos [...] a abordagem pragmática apóia as reformas liberalizantes e as que visam a redução do Estado, tal como representadas na postura neoliberal. (BRESSER PEREIRA, L. C. Reformas econômicas e crescimento econômico: eficiência e política na América Latina. In: BRESSER PEREIRA, L. C.; MARAVAL, J. M.; PRZEWORSKI, A. Reformas econômicas em democracias novas: uma proposta social-democrata. São Paulo: Nobel, 1996, p. 36).
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Apesar da minha discordância das argumentações do meu interlocutor, acredito que este debate foi um exercício intelectual importante, por ter exposto algumas idéias e por tê-las colocada à prova. Para finalizar, convido o leitor a imaginar e a criar os seus próprios argumentos e juntar-se a nós neste debate.
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NOTA DA REDAÇÃO
Os leitores são convidados a enviar seus comentários para o e-mail raeredacao@fgvsp.br. Comentários que enriqueçam o debate e apresentem novos pontos de vista poderão ser veiculados na seção “Debate” da RAE-eletrônica (www.rae.com.br/eletronica), a critério do editor da RAE.
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Publicado pela RAE - Revista de Administração de Empresas, da Fundação Getúlio Vargas
Sessão RAE-Debate
JAN/MAR 2005
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